Eve
(O conto que se segue faz parte da série "Antes dos 30". Acompanhe e se delicie)
Deixe eu explicar os fatos. Sou Eve, estou beirando os
trinta anos e me sentindo uma anciã com isso. Sempre fui precoce, sério!
Eu tinha um bebe de plástico quando era criança. Eu
amamentava ele, dava banho, dava remédio e colocava pra arrotar. Cuidei dessa
boca nesse mesmo ritual até os dezesseis, quando comecei a transar e não dava
mais pra amamentar bonecas.
Casei com vinte e três anos e já era formada em
arquitetura. Trabalho em uma empresa legal que me dá plano de saúde e estabilidade.
Carlos, o marido, é uma mistura de nerd com homem dos
sonhos. Era contador e passava quase todo o tempo com uma calculadora nas mãos.
Quando eu reclamava atenção, ele me dava um presente. Quando eu quebrava a
calculadora em meio a uma cena psicótica, ele comprava uma melhor ainda, como
se me desafiasse a fazer mais. Brigávamos pelo menos três vezes ao dia, e
logicamente acabávamos esse enfadonho dia em uma cama, pelados.
Parei de tomar meu anticoncepcional escondido dele há
cerca de três anos. Mas não tardou pra ele descobrir a farsa, e passamos a usar
camisinha. Eu sabotava sempre que conseguia, furando com uma agulha, ou me
oferecendo pra jogar no lixo depois que usávamos e despejava o conteúdo dela em
uma seringa... Sim, isso parece meio
nojento, mas estava desesperada! Tinha virado uma questão de honra ter um filho
antes dos trinta. Eu queria ser mãe, não avó. Mas ele sempre vinha com esse de
que não estávamos preparados, e voltávamos a brigar. Isso era chato às vezes,
mas eu era insistente.
Então ele começou a recusar sexo, e passou a dormir mais
vezes no trabalho dizendo que estava com serviço acumulado. Não tardou pra eu
receber um email anônimo me dizendo que ele estava tendo um caso com uma
secretária oxigenada e peituda. Não tenho problemas com oxigenadas, passei a
minha adolescência de cabelos clareados, mas me trair com uma, era demais pra
mim.
Implorei ao meu melhor amigo para que armássemos uma
emboscada para os dois, e, apesar dele apelar pra não participar disso, não
conseguiu fugir. Então lá estávamos nós, em plena sexta, meia noite, camuflados
com roupas escuras, invadindo um edifício comercial. Ok, não bem invadindo, eu
conhecia o segurança, e ele me deixou passar tranquilamente.
Pensando bem, até que aquilo foi engraçado. Pulamos na
sala de meu marido segurando lanternas e gritando feitos dois loucos. O susto
do casal foi tão grande, que tanto eu, como Heitor –meu amigo – tivemos uma
crise de gargalhadas histéricas. Eu sei que eu deveria estar triste porque meu
marido estava realmente pelado e engatado em uma loira qualquer, mas jamais
esquecerei como a cena foi engraçada de início. Claro que depois comecei a
chorar soluçante, e Heitor me tirou de lá às pressas.
Carlos me seguiu pedindo desculpas, segurando uma calça
para cobrir suas partes íntimas, mas ele e Heitor tiveram uma briga feia em
pleno elevador do edifício, e acabei largada num canto olhando para os espelhos
que tinham dos dois lados do quadrado. Eram milhões de Eve’s se multiplicando. Milhões
de Carlos sem roupa, e milhões de pensamentos sem sentido algum.
Quando cheguei em casa, peguei as coisas de meu marido e
joguei pela janela do prédio, vendo tudo fazer curva ao vento. Heitor só me
olhava de longe. Não quis ir embora, então acabou dormindo no sofá.
Sonhei com meus trinta anos se aproximando. Com minha
juventude indo embora e meu desejo de ser mãe indo junto.
Passei três meses choramingando pelos cantos, mas estava
decidida a arranjar um namorado, e logo. Incontáveis vezes eu sai com homens
que me paqueravam, mas nenhum deles me parecia um pai, e tenho certeza de que
todos correriam quando eu contasse minha decisão de ter um filho antes dos
trinta. Marcava encontros nesses sites, mas não queria filhos com genética para
engordar, nem com distúrbio do sono. Acabei desistindo da ideia.
Fui promovida no emprego algum tempo depois, e minha
família fez um jantar de comemoração. Tomei sozinha uma garrafa inteira de
vodca. Queria afogar as mágoas. Queria afogar minhas vontades.
Acabei a noite na beira da piscina da casa dos meus pais
coversando intensamente com um homem que nitidamente, também estava embriagado.
Lembro de ter pulado na piscina de roupa e tudo, e a próxima lembrança que
tive, foi quando acordei de manhã sem roupa, na cama de minha irmã mais nova e
ao lado de um homem. Estreitei os olhos. Estava zonza e bem enjoada. O corpo
enorme ao meu lado se mexeu e se virou. Quase caio da cama quando vi a figura
sonolenta e tão amigável de Heitor ao meu lado.
Não demorou muito e ele despertou. Olhou confuso para o
quarto e para mim. Focou em meu corpo seminu e no dele, então pigarreou e senti
toda a sobriedade chegar aos seus olhos.
- Nós...
- Acho que sim
- Uhmmm
Ele estava bem constrangido, e não era pra menos. Eu
tinha certeza de que meu rosto era um tomate de tão vermelho.
E então eu comecei a gargalhar, de novo. Qual era o meu problema? Porque sempre
terminava as situações mais loucas da minha vida gargalhando?
Dessa vez ele não me acompanhou, só levantou da cama, se
vestiu lentamente e saiu.
Fiquei sem ter notícias dele por dias. Mandei mensagem de
texto, email, liguei, fui em seu apartamento e falei com o chefe da empresa
onde ele trabalhava. Ele tinha sumido.
O que faria sem ele? Com quem iria ao cinema e com quem
riria das anáguas da minha vizinha do 301? Fiquei depressiva por dias. Ele ainda
estava sumido depois de dois meses. E foi quando eu comecei a ficar doente.
Passava mal direto e tinha sono o tempo inteiro. Estava tão preocupada com
Heitor que só me liguei no que estava sentindo quando uma mulher no metrô me
viu esverdeada e perguntou se estava no início da gravidez. Estanquei no
silêncio de meus pensamentos e fiquei divagando coisas desconexas deixando meu
ponto de descer passar, e muito.
Será? Grávida? Depois de tudo o que tentei? E do meu
melhor amigo??????
Pirei! E não estou falando no sentido figurado. Comecei a
gritar feito uma doida dentro do metrô e na estação seguinte tiveram que chamar
uma ambulância para me tirar de lá de dentro. Na verdade eles ficaram em dúvida
se chamavam a polícia ou os médicos. Optaram pela segunda opção quando me viram
usando um sobretudo caro.
Minha irmã me resgatou do hospital. Liguei pra ela quando
eles sugeriram me internar numa casa de repouso. Tentei argumentar que estava grávida,
não doida. Mas aquilo era tão insano pra mim que nem eu mesma acreditava.
Sai de lá direto pra casa de Heitor. Ele precisava saber
disso. Ok, eu não tinha certeza de nada, mas queria ter alguém pra pirar
comigo, não podia ficar sozinha. Ele não estava em casa, óbvio! Deixei um
recado escrito por debaixo da porta dizendo que poderia estar grávida. Mandei
uma mensagem de texto e de voz para o celular dizendo a mesma coisa. Deixei
recado na secretária eletrônica. Falei com o chefe dele, que me parabenizou.
Apelei pra todos os santos e liguei pra mãe dele que morava no interior e disse
que se o visse, dissesse que achava que estava grávida.
Enquanto Vanessa dirigia, perguntava se eu não queria
passar nos Classificados e por um anúncio da minha gravidez no jornal. Também
sugeriu um outdoor, e foi ai que passei a mão na barriga e sorri comigo mesma.
Como eu não tinha pensado nessa escolha antes? Como jamais tinha pensado em
Heitor?
Ele era bonito, um gerente de publicidade importante. Não
tinha genética para engordar e nem sofria de distúrbio do sono. Era meu melhor
amigo e poderíamos compartilhar a guarda. Era a opção perfeita!
Dividi meus pensamentos com minha irmã e ela sorriu pra
mim balançando negativamente a cabeça.
- Você é uma palerma, Eve! Há quantos anos você conhece o
Heitor?
- Dez – Respondi automaticamente, apesar de sentir que o
conhecia durante toda a minha vida.
- E em dez anos você nunca percebeu que ele gostava de
você?
- O que? – Congelei.
- Palerma!
Ela dirigia rapidamente, queria chegar a um laboratório
para ter certeza ainda hoje. Mas só conseguia pensar no que ela tinha dito. Ele
gostava de mim? Desde quando? Será que foi por isso que ele foi embora daquele
jeito no outro dia? Ai meu Deus! Então essa gravidez não seria uma benção pra
ele, seria tipo uma maldição. Tentei não pensar nisso agora. Precisava ter
certeza.
Ela me deixou na porta de um laboratório no centro e
pediu pra ligar pra ela quando acabasse. Ela sempre foi fraca para ambientes
médicos, e naquele momento eu realmente queria estar sozinha.
Fiz minha ficha e não demorou pra me chamarem para uma
ultrassonografia. Nada de Beta HCG, eu queria ver aquilo de perto. Coloquei uma
bata médica e esperei cerca de cinco minutos em uma antessala fria e que
cheirava a álcool.
Deitei na maca tão nervosa que tremia. A médica passou um
gel no aparelho e o colocou de imediato na minha barriga. Vi os rabiscos comuns
em exames de imagem. Era meu útero, só ele, e então algo se moveu. Úteros não
se movem. Segurei a respiração por algum tempo para meu corpo não se mexer
involuntariamente. E vi nitidamente a coisinha pequena se mover. Era minúsculo,
um caroço pequeno e inquieto, mas no fundo mesmo, eu quase podia ver os olhos
cinza de Heitor na criança, podia ver meu nariz reto, aristocrático, as mãos dele,
forte e conveniente; os cabelos de meu pai, ondulados nas pontas, e o sorriso
de Heitor, sempre perfeito. Senti as lágrimas caírem risivelmente pelos meus
olhos. Estava desesperada, lógico! Mas também estava radiante de felicidade. Ouvi
alguém pigarrear atrás de mim, e era um pigarro tão característico que chorei
mais forte quando me virei e o vi parado há dois metros de onde eu estava. Não
me olhava, estava com os olhos fixos na tela e no barulho ritmado que era o
coração do bebe. Seus olhos, também cheio de lágrimas, estavam explicitamente
expressivos. Era amor, angustia e alegria. Exatamente como os meus. Ele se
aproximou e então se virou pra mim e me olhou com ternura. A médica disse que
ia nos deixar sozinhos e éramos só nos dois, ou melhor, nos três.
Ele colocou a mão na minha barriga e sorriu. Pensei no
que Vanessa tinha dito no carro, senti meu rosto se avermelhar. Nunca tinha
prestado atenção em como ele ficava lindo ness estado hipnótico.
- Como você... – Comecei.
- Recebi seus duzentos recados e acabei ligando pra
Vanessa, ela era meu contato pra saber que você estava bem. Então ela me disse
onde você estava.
- Desculpa! – Falei baixo.
Ele me olhou sem entender e passou a mão no meu cabelo.
- Eu quem preciso me desculpar. Fui um idiota sumindo
desse jeito, mas é que... é que eu...
- Você gosta de mim. – Terminei a frase para ele que se
virou rapidamente e focou meus olhos com dor.
- E sabe qual a pior parte – Ele alisou meu cabelo- Não
me perdoo por ter dormido com você e não me lembrar de absolutamente nada.
Sorri pensando em sexo, ou melhor, em sexo como ele.
Também não me lembrava de nada daquilo, e realmente, pensando bem, era
frustrante ter engravidado e não lembrar como.
- Eu também. – Era a mais pura verdade.
Vi seus olhos passearem nos meus e um leve sorriso
passear sobre seus lábios, que percebo agora, como eram bonitos. Como eu nunca
pensei em Heitor para ser minha opção de vida? Falávamos sobre tudo, fazíamos
tudo o que um casal fazia. Ele era o homem mais inteligente que conhecia e o
mais amável. Ele seria um bom namorado, ele seria um bom pai. Estive dez anos
ao lado do melhor homem do mundo e só percebi movida por hormônios da gravidez?
Que saco!
Era real! Eu estava grávida, e tinha sido por puro
acidente. Quer dizer... Uma vez Vanessa me disse que acidentes não aconteciam,
que existia um ser mágico que gostava de pregar peças nas pessoas colocando-as
na frente de outras pessoas que não combinavam com ela durante suas vidas, mas
que uma hora ou outra, ela colocava a pessoa certa, no momento certo e com a
situação certa.
- Se você quiser – Ele falou alisando minha barriga e
fazendo meu cabelo se arrepiar.- Podemos tentar de novo.
Não era malícia em sua voz, só uma forma descomplicada de
me dizer que queria tentar.
- Você sabe que tenho problemas pra dormir – Falei
sorrindo.
- Sei, mas não me importo nem um pouquinho com suas
esquisitices.
Tudo começou com uma vontade absurda de ser mãe, hoje em
dia se tornou uma vontade deliciosa de ser mulher e amante.
Comecei num soluço abafado de sorriso, com o tempo ele
foi sorrindo também e logo ambos ríamos alto o suficiente pra chamar a atenção
da médica que estava do lado de fora. Ríamos pelos momentos que choramos juntos
e que vimos o resultado do vestibular juntos. Ríamos pela vez que encontramos
meu marido transando com uma oxigenada. Ríamos pelas noites de cinema regadas a
pipoca com sorvete light. Ríamos por ter acordado de ressaca do lado um do
outro. Ríamos por eu ter realizado meu maior sonho beirando os 30. Ríamos
porque éramos amigos e isso era o que todo amigo fazia junto, ninguém quer ter
um filho de um inimigo. E, sobretudo, ríamos porque nos amávamos imensamente e
éramos dois tolos de nunca ter pensado nessa opção. Ok, eu era “A tola”. Como
Vanessa tinha dito mesmo? A Palerma. Como era bom se descobrir palerma.