Essa é a postagem do primeiro conto do Clube por aqui.
Eu deveria estar postando o conto de outra blogueira, mas acontece que tivemos alguns imprevistos e acabou que meu texto ficou sem espaço para ser postado e a da blogueira que eu iria postar não pode sair esse mês. Então resolvi trazer o meu por aqui mesmo.
Lembrando que a ideia do Clube não é que cada uma publique seu próprio conto, mas sim os contos de outras blogueiras.
O Tema do mês foi Revoluções ou Guerras.
Cada uma escreveria algo relacionado com o tema, independente do estilo. Vamos ler o que eu consegui produzir?
O cinza da neve
Meus
olhos estavam há mais de três minutos fechados. Coloquei uma força tão grande,
que quando abri pequenos raios coloridos iluminaram a imagem à minha frente.
Era uma garota. Uma garota de pele clara e olhos grandes e amendoados. O cabelo
era escuro e entregava de alguma forma, uma raça que não deveria existir. O
deus que ela acreditava era justo, então tinha que haver alguma justiça em ser
condenada pelo deus deles. Ela não entendia como ter menos cabelos loiros a
tornava menos humana. De acordo com “eles”,
ela era um animal que veio habitar um lugar que já tinha dono. Naquele momento
ela se sentia um animal. Era pele, osso, raiva, lembranças e um fio quase nulo
de esperança. Se a esperança era a responsável pela humanidade nas pessoas,
então ela não duvidava de que era um animal.
O
espelho à minha frente tremeu quando os tanques começaram a passar pela rua, e a imagem da garota que eu conhecia tão
bem, novamente saiu de foco. Fui até a janela para ver a frota de carros
lacrados e super protegidos. Nenhum animal, como nós, seria capaz de quebrar
aquela barreira. Como eu odiava a lógica racional naquele exercito!
Desci
as escadas lentamente, mas não antes de respirar fundo pelo menos sete vezes, e
me assegurar que nenhum pingo de medo sairia em minha voz. Vesti a blusa
ridícula e comum que eles haviam nos dado. Tinha uma estrela amarelada no
canto, como uma forma de alegrar nossas vidas tão listradas de cinza. Era
patético!
Minha
mãe estava sentada numa cadeira em frente à janela. Tinha um papel amassado nas
mãos e o rosto com rugas. Rugas demais. Ela observava o movimento na rua, e
nitidamente estava tensa. Dava para sentir sua respiração entrecortada pelo
balançar que seus ombros tinham. Como queria poder tirar metade daquele peso!
Meu
irmão estava abraçando as pernas e se balançando de uma forma bem neurótica de
um lado para o outro. Vê-los daquela forma me cansava, e por muitas vezes eu
preferi ficar no telhado buscando cores no por do sol ou no nascer dele. Tinha
cinza demais nas nossas vidas, e minha família era uma ramificação dessa cor
sem vida e classificativa.
Minha
ideia era lhes dizer que iria à casa de Regina, na porta ao lado, mas tudo o
que consegui fazer foi colocar o casaco por cima da roupa e uma boina para me
proteger do frio. Sai pela porta dos fundos o mais silenciosa possível, tendo
toda certeza do mundo que eles tinham me escutado, e que jamais me impediriam
de sair.
O
ar estava frio, e soltei um suspiro cheio de fumaça enquanto colocava os bolsos
dentro do casaco. Foi quando olhei o beco estreito que o percebi encostado do
outro lado, fumando um cigarro com uma perna apoiada no muro. Ele conseguia ser
muito sensual quando queria. Os cabelos “claros demais” estavam bem penteados
de lado. Os olhos de um azul profundo e claro. O uniforme engomado lhe dava um
ar austero, como se ele precisasse disso. Sorriu daquela forma que só ele seria
capaz de fazer, com uma covinha na bochecha e dentes alinhados e brancos,
apesar do cigarro. Peguei-me pensando se realmente ele não poderia ser de uma
raça pura, era bonito o bastante para isso.
Olhei
para os dois lados da rua, e sorri de volta quando não vi ninguém por perto.
Caminhei lentamente em direção a ele, e quando nossos rostos estavam há menos de
trinta centímetros um do outro, ele olhou para a minha boca, e eu olhei para
seus olhos. Algo no meu ventre sempre borbulhava quando ele me olhava daquela
forma. Se ele quisesse meter uma bala na minha cabeça ali mesmo, ele podia.
Invés disso agitou a cabeça fechando os olhos e me puxou de uma forma forte,
mas nada agressiva, para o porão de uma das casas já abandonadas. Me prendeu na
parede e nem deu tempo de perguntar o que tinha acontecido. A boca dele já
estava grudada à minha numa impetuosidade ímpar. O frio era congelante naquela
época do ano, mas nesse momento, eu necessitava tirar o casaco, e se pudesse
todo o resto. Fazia muito tempo que eu tinha deixado meu pudor de lado, já não
sonhava em casar, nem acreditava que fosse viver o suficiente pra ver meus
vinte anos.
Levantei
de leve a sua blusa e passei a mão na sua barriga tão militar. Senti sua pele
arrepiada e um gemido de leve saiu de seus lábios e encheu meu orgulho. Mas ele
segurou minhas mãos e me olhou com seriedade. Alguma coisa estava errada, quer
dizer, mais do que o normal.
-
Ester, eles vão levar mais de vocês. – Sua voz saiu rouca, mas ele não desviou
o olhar. Era o que ele podia fazer de melhor, me dizer a verdade me olhando nos
olhos.
Já
passamos por isso pelo menos três vezes. Os carros chegavam, nos alinhavam nas
portas e os nomes eram chamados. Era sempre algo doloroso de se ver. Bem que eu
tinha desconfiado quando vi a quantidade de tanques passando pela rua. Era hora
de recrutar mais mãos de obra cinzenta.
Ele
estava nitidamente preocupado. Tinha ficado nas outras vezes ao ponto do
oficial superior a ele querer manda-lo de volta para a base achando que ele
poderia estar doente. Mas ele não saiu de perto de mim, ou melhor, o mais perto
que era possível ser de conhecimento geral, ou seja, ele podia me espancar, não
me alisar.
Segurei
seu rosto entre minhas mãos e beijei de leve seus lábios.
-
Nós já passamos por isso antes, e vamos passar mais uma vez.
-
Quase não tem mais pessoas com idade para o trabalho por aqui. Você não vai ter
como correr disso muito mais. – Odiava vê-lo angustiado daquela forma, e usei a
única arma que tinha ao meu favor: a falta de esperança.
-
Ora – Era desdém em minha voz – Uma hora ou outra eu teria que ser convocada,
não é?
Ele
me olhou furioso e soltou minha mão de seu rosto enquanto alisava o cabelo,
bagunçando-o.
-
Você acha que isso é uma brincadeira? – Ele soltou numa voz baixa, mas firme –
Você acha que estou tranquilo com isso ou que poderia ficar? - Eu fiquei imobilizada. Era raro vê-lo raivoso
dessa forma comigo. – Não quero ouvir você falando mais em ir para os campos,
está me ouvindo? Não quero saber de você achando que não tem jeito– Era o
oficial falando naquele momento, não o amante.
Depois
do que pareceu uma eternidade, eu consegui piscar, e o bicho dentro de mim
rosnou.
-
E por acaso você acha que eu estou brincando? Não é você que usa uma mortalha
em todas as horas do dia esperando só o momento em que ela não sairá mais do
seu corpo. – Ele sentou lentamente em uma cadeira velha de madeira, ainda me
olhando. – Minha mãe está que nem respira em casa e meu irmão fica parecendo um
doido de um lado para o outro, como se isso fosse nos livrar de alguma coisa. –
Uma lágrima desceu pelo meu rosto e tratei rapidamente de enxuga-la. – Você
sabe o meu lugar nisso tudo, sempre soube. Você sabe que se o campo não me
matar, um de vocês o fará, e prefiro morrer numa câmera de gás, a ser estuprada
por um batalhão.
Ele
se encolheu com o final do meu discurso. Me arrependi assim que o disse. Sabia
que ele não tinha opção e que fazia o que tinha que fazer. Sabia que ele
poderia estar morto nesse momento se tivesse se negado a fazer parte disso
tudo. Sabia que preferia estar apaixonada por um nazista à nunca o ter
conhecido.
Me
ajoelhei na sua frente e segurei suas mãos trêmulas junto das minhas. Soprei ar
quente entre elas para nos esquentar. Ele me puxou para junto dele me sentando
em seu colo, e eu quis ser uma menina, colocando a cabeça no ombro dele.
Sentindo aquele cheiro delicioso de menta misturado com nicotina.
-
Eu nunca deixaria nada acontecer a você. Não sem antes acontecer comigo.
Meu
coração saltitou, mas parou menos de dez segundos depois. Eu era um animal, só
que esquecia isso às vezes.
-
Vamos encarar a realidade, Lukas, eu vou morrer nessa droga de qualquer jeito,
você vai viver e ser condecorado – Eu e meu humor negro. – Não diga essas
coisas bonitas para mim, porque por mais que eu ame você, estou me preparando
para te deixar, e permitir que você conheça uma garota que não tenha que usar
esse uniforme cinza.
Senti
ele congelar agarrado em mim. Ele puxou meu queixo para que ficássemos um
olhando para o outro. Ele estava surpreso.
-
Repete. – Ele disse baixinho sem desviar os olhos dos meus.
-
Sério que vou ter que repetir tudo? Você sabe que a realidade é...
-
Não – Ele me cortou sorrindo – A parte que você disse que me amava.
Estreitei
os olhos e resmunguei internamente que eu tenha dito isso em voz alta para ele.
Eu o amava. O amei desde a vez em que o vi salvando um garoto judeu por ter
roubado uma maça de um soldado. O amei quando o peguei dançando alegremente e
escondido em um porão, como esse. O amei quando esbarrei nele olhando as
estrelas de cima de um telhado. O amei quando fui dele, de todas as formas, de
qualquer aspecto que uma mulher pode pertencer a um homem. Nunca tive dúvidas
de que o amava, mas sabia do meu futuro, e sabia do futuro dele, e eles não
estavam ligados. Não queria tornar as coisas mais difíceis. Mas era tarde, eu
já tinha falado demais.
-
Eu te amo, Lukas! – Falei agarrada à sua roupa numa tentativa impossível de não
sair dali mais nunca.
Ele
respirou fundo e me beijou sorrindo. Seu rosto era um misto de desespero, medo,
felicidade. Eu nem lembrava como era sentir tanta coisa de uma vez só. Ele me
aninhou em seu colo e solfejou uma canção de ninar. Eu não a conhecia, mas era
deliciosa de escutar.
Um
barulho mais à frente na rua chamou nossa atenção. Dei um pulo do colo dele
enquanto ele sacava a arma. Escutei vozes de longe. Ele me puxou para a saída
do porão, me beijou por um longo momento e falou rapidamente e quase num
sussurro:
-
Eu tenho um plano que vai tirar você e sua família daqui.
-
Como? - Sabia que meus olhos estavam
arregalados.
-
Não dá para contar agora, mas você precisa confiar em mim.
É lógico que eu
confiava.
-
Mas e os outros? – Tentei esperançosa.
-
Não posso fazer nada pelos outros – Era dor que via em seus olhos.
-
Mas...
-
Ester – Ele segurou meu queixo e me puxou para mais perto – Eu posso ficar sem
os outros, por mais que me doa, mas depois que te conheci, não consigo imaginar
um segundo da minha vida sem você.
Olha meu coração
batucando novamente.
-
Eu vou te tirar daqui, meu amor, e nem que tenha que ir até o outro lado do
mundo para te salvar, eu irei. Um dia essa guerra ridícula vai acabar, e
voltaremos pra casa.
-
Você sairia do país por mim? Mas e seu pai? E seu posto?
-
Eu faria qualquer coisa por você.
E
não encontrei mais espaço para argumentar. Ele me beijou novamente e me deixou
no beco enquanto dava a volta para chegar à rua da frente. Ajeitava o cabelo e
o uniforme que tinha sido remexido por mim. Voltou a ter aquela postura
inabalável que todos esses soldados tinham. Eu esmoreci. Queria ter metade da
coragem que ele tem, e fazer metade do que ele esta fazendo.
Senti
uma centelha quente queimar na minha cabeça e viajar por cada partícula do meu
corpo. Era uma coisa que eu sabia que já havia sentido, mas que não lembrava a
sensação. Sorri para o nada colocando a mão no meu peito. Gargalhei sem fazer
barulho, só sacudindo o corpo e chorando lágrimas incontroláveis. Era uma
centelha de esperança. Uma esperança de fugir desse país com Lukas e minha
família. Uma esperança de que um dia essa guerra acabe e eu possa voltar a usar
cores. Uma esperança de fazer os vinte anos.
Ainda
acredito que eu seja um animal, mas eles não verão facilidade em mim. Serei um
daqueles que se joga em um abismo por alguém que ama. Eu podia ser uma pessoa
sem fé, mas amor eu tinha. Tinha amor para derrubar o exercito inteiro, e era o
que faria, me comportando justamente como eles achavam que nós nos
comportávamos: Como animais.