Resenha de "Menino de Ouro" (Abigail Tarttelin)

"Melhor livro do ano"

Sinopse: A família de Max não permitiria nenhum desvio na imagem perfeita que havia construído. Karen, a mãe, é uma advogada renomada, determinada a manter a fachada de boa mãe, esposa e profissional. Steve, o pai, é o exemplo do chefe de família presente em sua comunidade, favorito a um importante cargo público. O ponto fora da curva é Daniel, o caçula, que, para os padrões da família Walker, é “estranho”: não é carinhoso, inteligente ou perfeito como Max. Melhor aluno da escola, capitão do time de futebol, atlético, simpático, sucesso entre as garotas: Max, o primogênito, é o menino de ouro. Ninguém poderia dizer que sua vida não é perfeitamente normal. Ninguém poderia dizer que Max esconde um segredo.  (SKOOB)




Acredito que essa venha a ser a resenha mais difícil que eu vou escrever esse ano, a não ser que Deus seja generoso comigo ao ponto de me dar mais algum presente de natal tão maravilhoso como Menino de Ouro. Porque devo admitir, não poderia ter lido um livro melhor para a situação que estou vivendo em minha vida nesse momento.

Conhecemos a história de Max, um adolescente beirando os dezesseis anos. Ele é lindo, capitão do time de futebol, aluno exemplar; mas tem um segredo que talvez o tire dessa mesmice de menino perfeito do ensino médio: Ele é intersexual. E daí alguns de vocês podem se perguntar “O que porra é isso”, e então eu respondo “É a mesma coisa que ser um hermafrodita.” Ou seja, ele tem dois sexos.

Ok, até ai não temos nada que seja o fim do mundo, é verdade que pouco se fala sobre intersexuais na literatura, mas é uma coisa sobre a qual já ouvimos falar e que não nos espanta tanto. Acontece que uma coisa poderosa acontece com Max logo no início do livro, tipo no início mesmo (Página 20?!), e o enredo da autora começa a se desenrolar a partir disso. Infelizmente não tem muita coisa que eu possa falar em relação à história, visto que ela toda tem haver com esse início bombástico, mas posso falar sobre como me senti lendo Menino de Ouro.

Uma coisa importante para observar é que o livro tem vários narradores. Max, nosso menino fantástico; Karen, a mãe super protetora e certinha; o pai, um advogado famoso concorrendo a um cargo público; Daniel, o irmão de dez anos que tem mais sabedoria do que muita gente de trinta; a médica que trata Max e por fim Sylvia, uma amiga muito especial na vida dele.

Observo sobre esses personagens porque nunca, em livro nenhum de pontos de vistas alternados, achei tão importante o fato de a autora ter pensado nessa forma de narrativa. Foi perfeito nesse contexto! Você acompanha o que cada um deles pensa sobre esse “problema de Max”, e como eles agem, ou como deveriam agir numa situação onde eles costumam se esconder.

Gente, peguei um engarrafamento de quase seis horas na minha cidade na sexta. Foram seis horas tensas, e nem foi tanto porque eu estava completamente parada num calor da bexiga em um das piores vias que temos por aqui, mas porque eu simplesmente sufoquei lendo esse livro. Ao ponto de eu precisa levantar e ir me juntar ao motorista do ônibus que estava pegando um arzinho do lado de fora embaixo de uma árvore. Eu sufoquei porque a escrita da autora é de uma proximidade com o leitor que não existe uma possibilidade de não se envolver com os personagens.

O negócio era o seguinte... Eu não conseguia formar um ponto de vista porque não existia um que fosse totalmente aceitável na minha cabeça. Era tudo muito confuso! Por exemplo, se eu tivesse um filho com dois sexos e tivesse criado ele a vida inteira como se fosse um menino, e então eu resolvesse me candidatar na política de um dos países mais conservadores do mundo, pensaria logicamente como meus eleitores reagiriam a isso. E nem venham com essa de que “isso é besteira!”. Galera, eu sou uma pessoa que me considero sem preconceito algum com quase nada, principalmente em se tratando de sexualidade; mas quando eu li esse livro e me coloquei em certos pontos de vista, percebi o quanto ser intersexual é mais confuso do que ser homossexual.

Max estava ali, no meio de uma coisa que ele não sabia lidar, com ambos os sexos que ele não sabia escolher, com pais que não sabiam como cuidar dele, numa sociedade que não o aceitava, com amigos que ele morria de medo que soubesse disso porque iriam embora, com uma garota que parecia o sonho de sua vida, mas que talvez não aguentasse o tranco. Percebe o quanto isso é pesado para um menino de dezesseis anos? E isso porque vocês não sabem exatamente o que acontece na história.

Eu pirei junto com o Max. Sério! Eu pirei ao ponto de começar a rir descontroladamente numa das cenas mais pesadas e bem construídas que já li na minha vida. Eu não sabia se ria ou se chorava. Se corria ou se ficava embaixo do sol esperando fritar. A indecisão de Max passou a ser a minha e isso me tocou ao extremo.

Terminei esse livro pensando em como eu sou babaca por criticar tanto minha vida. Terminei me sentindo uma idiota de ver que o mundo tem tanta gente que não sabe para onde ir, e que eu não consegui enxergar uma forma de orienta-los, porque nem eu mesma sei como seguir.

Quando finalmente meu dia se aquietou, sentei num banco de praça e fiquei calculando quanto tempo já perdi brigando com pessoas que não valiam mais a pena para mim. Não que elas fossem erradas, muito pelo contrário, mas às vezes elas não combinam mais com nosso modo de vida. Às vezes elas vão embora porque precisam e é babaquice esperar que aquilo possa mudar ou se culpar por isso.

Cada pessoa dentro dessa história teve um motivo para fazer o que fez. E eu entendi cada uma delas, mesmo a mais errada delas. Eu me aproximei das angústias e dos medos e das esperanças, ou no caso de Max, da terrível descoberta que ele teria que mudar alguns dos seus sonhos.

Percebi que pais fazem coisas estranhas para nos proteger do mundo, quando em muitos momentos eles são completamente indefesos e mais sozinhos do que a gente.

Percebi que irmãos são figuras loucas que nos tiram do sério, mas que jamais nos abandonam. E mesmo quando eles vão embora ou nos traem de alguma forma, podem acreditar que eles sempre estarão lá. Os laços familiares são incríveis! Mesmo aqueles que nos machucam tendem a nos ensinar alguma coisa.

Percebi que quando uma amizade não respeita suas decisões ou não fica por perto para puxar sua orelha ou te dizer umas verdades, é porque ela não vale mais a pena para você. E se você tem alguém que você grita, xinga e bate e a pessoa permanece em silêncio esperando que você se acalme, então você encontrou um tesouro.

Dilacerada. Despedaçada. Estilhaçada. E por incrível que pareça mais inteira do que quando comecei a ler esse livro. Senti libertando alguma coisa que não sabia definir, mas que estava me fazendo mal. Se eu tivesse como, teria gritado. Se eu tivesse como, teria chorado mais porque minhas lágrimas não foram suficientes.

Se o final é triste? Bom, isso vai depender do que você considera tristeza. Não espere pôneis saltitantes nem sorrisos alegres durante essa leitura. Os sorrisos são contidos e sinceros, mas até eles mostram que não tem como ser feliz o tempo inteiro, e que as maiorias das nossas escolhas contribuem para determinar um sorriso falso, e talvez feliz, e um sorriso sincero, e por vezes triste.

Saber que a autora que o escreveu tinha 23 anos me deixa numa imensa agonia. Se alguém dessa idade conseguia dar uma vida tão concreta a um personagem tão irreal e real e lúdico, imagino o que ela fará com 40 anos e mais alguns aprendizados que a vida se encarrega de nos dar. A escrita da menina é simplesmente ESTÚPIDA de boa! Chega a ser ofensivo o quanto ela é um monstro escrevendo.

Foi um livro sobre descoberta. Uma descoberta sofrida, gélida e pessoal. Max tem relacionamentos complicados, mesmo que ele faça de tudo para torna-los perfeitos. É alguém escondido num estereótipo de perfeição porque acha que desse modo consegue esconder quem ele realmente é.

Um livro sobre valores sociais e culturais. Sobre o quanto você é capaz de suportar por um ideal, por um amor, por uma escolha, por um erro e por algo mais. É um livro que vai te fazer ter asco por algumas pessoas, e por muitas delas. É um livro que te fará sentir pena de alguém que você nunca conheceu e que nem existe, mas que foi mais próximo a você do que as pessoas que moram na sua casa.

E se eu não dei motivos suficientes para vocês lerem esse livro, então aqui lá vai o mais poderoso deles: Pode parecer bobo, mas com Menino de ouro eu senti que nada no mundo pode me abalar o suficiente para me fazer esquecer quem sou. Nada pode vir na frente de mim mesma. Pensar dessa forma pode ser egoísta, mas é a forma certa, senão o mundo vai te tragar para um lugar sombrio onde você não irá conseguir sair tão fácil.

E não somos todos meninos dourados escondidos por trás de convenções sociais? E não somos todos cordas presas ao mundo por um único fio roído? Fazer a diferença começa por você. Sempre começou. Agora levanta já dessa cadeira, vai ao espelho mais próximo e me diga... Quem é você?