A minha amada filha, e guerreira, Maria Júlia. Pelos cinco anos que estaria fazendo amanhã.
Parabéns minha vida e minha eterna, e colorida lembrança!
Já pararam para pensar no quão
complicado são nossas lembranças?
É como se elas tivessem vida
própria e escolhessem o que esquecer, mesmo que tenha sido um evento de ontem,
ou lembrar coisas que viveu aos três anos.
Não me considero uma pessoa
boa de memória. Na verdade se me colocarem do lado da Dori (o peixinho do
Procurando Nemo) é capaz de me confundirem e me internarem por perda de memória
recente.
Mas quando fecho os olhos algumas
imagens não cessam de aparecer. Elas vem em ondas devastadoras como um tsunami
destruindo toda a minha saúde mental e me levando a um estado pós-apocalíptico;
com sede, com fome e cansada demais para fazer as duas coisas. Procuro abrigo
longe da minha cabeça, me centrando em coisas que posso fazer com as mãos. Às
vezes funciona, mas quando o serviço manual acaba e contemplo o trabalho pronto
fico tão emocionada que abaixo a guarda e então as ondas voltam e fico perdida
novamente.
Alguém que admiro muito me
disse uma vez que não existe felicidade eterna, senão a vida seria um completo
saco e não iríamos admirar tanto as coisas boas quando elas viessem a
acontecer; mas existem momentos felizes e temos que aprender como acumular
aquilo para que quando as ondas vierem em formas de pesadelos, os botes e
barcos estarão à disposição para nos apoiar.
Não existe fórmula mágica para
isso, basta se deixar levar. Ir de encontro com a água devastadora fará você
cansar mais rápido e não adiantará nada.
Já notaram como o céu adquire
várias cores no período em que esta nascendo e depois quando esta se pondo?
Passamos de escuro a claro, de tons neutros ao mais belo neon. Já ficaram,
realmente, admirando para perceber quantas cores aparecem? Todas elas.
Uma coisa tão grande quanto o degrade
do céu pode nos tirar de abismos profundos, mas do mesmo jeito que acontece com
as lembranças, as cores também se vão e no final do dia temos o negro, algo que
sempre se assemelhou ao nada, a ausência do tudo.
Foi assim que me senti há uns
anos atrás; como se tivesse sido lançada num abismo marítimo e tivessem me dado
oportunidade de ver o céu mudar de cor, mas apenas de longe, e pelo reflexo
turvo da água. É angustiante não poder tocar na vida e ver sua respiração se
esvair aos poucos. Ao perceber que esta presa em grilhões de algas marinhas, você
esquece-se de lutar e fica apenas olhando. Resgatando memórias perdidas e
criando memórias que nunca acontecerão.
Criar memórias é mais difícil
do que perdê-las. As criações de lembranças se assemelham aos sonhos:
Imprevisíveis.
Então algo nos toca lá no abismo,
uma mão? Uma corrente? Salva vidas?
Você não consegue ver porque
naquele exato momento o tom do céu é rosado e, em alguns pontos, um lilás tão
puro e sonoro quanto o próprio nome. A salvação dança como uma sereia na sua
frente, te chamando, te seduzindo, mas é bom demais aquele canto que você esta
escondido. Sair de lá significa recomeçar e você não sabe fazer isso, você não
quer fazer isso por medo que as lembranças se percam no vazio dentro de você, e
você precisa desesperadamente que elas se percam mesmo que seja por um breve
momento.
Contraditório, não é?
Talvez mais do que pareça.
Nunca entendi essa briga que
minha vida e meu vazio travavam dentro de mim.
Nunca achei que se conseguisse
ficar parada e pensando em nada, e descobri, da pior forma que é mais comum do
que se imagina. Mas aquilo explode e você vê seus pedaços estilhaçados como
espelho no mar aberto a sua frente. Em cada lasca do enorme espelho retalhado
que é sua existência, você assiste a cenas isoladas que te fazem perceber
porque está vivo, e porque você precisa se agarrar a salvação dançante em sua
frente. O dia em que você deu seu primeiro beijo, ou a primeira vez que você
foi elogiado por um professor, ou o dia em que faltou a aula para ir ao cinema
com as amigas, ou ainda aquele dia em que seu irmão inicialmente tão esnobado
passou a ser sua maior força. Sua mãe aparece em meio ao espelho dançando um
reggae louco vestindo roupa de menina e aquela tia esta lá falando coisas belas
e profundas que ela tirou de algum livro maravilhoso ou apenas de experiência
de vida suficiente. E então você enxerga dois rostos turvos no espelho e se
pergunta por que não consegue enxerga-los direito. Uma luz parece sair de
dentro de você e caminha em direção àquela lasca tão indecifrável e você
finalmente enxerga um rosto de olhos brilhantes e escuta uma risada
inconfundível. E seu pai está ali, te levando ao cinema com legendas quando
você não sabe ler, e te dizendo que você é uma ótima líder e que nunca
desistisse de ser quem é. E a outra lasca sai lentamente de trás do pedaço
recortado do seu pai, e é uma feição delicada e serena, uma menina tão pequena
que cabe sobrando nas mãos unidas, com lábios e dedos arroxeados e você sente
uma vontade enorme de chorar porque todo o seu amor esta naquele pedaço, e você
tenta alcançar porque tiraram rápido demais de você, mas ele fica fugindo,
porque não pode estar mais perto, porque é contra lei divina estar fisicamente
perto. E você sente raiva, uma raiva estrondosa que te deixa com dedos duros e
finalmente você luta. Para se livrar da prisão em volta dos punhos e para
alcançar desesperadamente aquele pedaço de espelho. E é ai que você agarra, meio sem jeito, como
se fosse uma criança aprendendo a andar ou falando pela primeira vez. Você sai
balbuciando nomes e datas e lugares para ver se esta tudo ok com suas
lembranças, e elas não te decepcionam.
As lascas mais belas do dia
começam a se afastar em direção à superfície e você nada, apesar de nunca te
aprendido a nadar. Descobre-se uma nadadora eficiente e uma trilha sonora ao
estilo Guerra nas Estrelas enche seu ser e você se torna uma hélice.
Superfície. Se algum dia
alguém me dissessem que era tão doloroso e tão maravilhoso respirar eu não
acreditaria. Mas ali estava eu, sorrindo para a mudança de cor do céu e
sentindo que as lascas belas se espatifaram mais ainda e aderiram na sua pele
se transformando em morfina para a dor. E a gargalhada vem, com espasmos
corporais e se confundindo a um choro latente, de tristeza, de alegria, de
alívio.
Sobrevivi. E duvido que alguma
outra coisa na minha vida possa me derrubar daquela forma. Não daquele jeito,
jamais naquela intensidade.
E de repente adoro a cor do
céu sem a calmaria do mar. Gosto de ouvir as ondas quebrarem, mesmo que sejam
para me levar junto e me fazer perder o fôlego, de novo e de novo. No final das
contas, é isso que vale a pena... Essa capacidade infinita de nos quebrar em
vários pedaços e juntar as lascas depois formando algo diferente e muito
melhor.
Tenho rompantes que parece que
volto a me afogar, mas dessa vez é mais fácil encontrar a corda de volta a
superfície. Agarro-me nela com destreza porque sei como fazer isso, e sei que
recompensa pelo fôlego é estupidamente incrível.
Existem lembranças que
simplesmente são irreparáveis. Elas podem se esconder quando você esta agitado
num ritmo frenético de vida, mas logo que você para e vai descansar, elas
aparecem; juntamente com os cheiros, tatos, sabores e tudo o que participou do momento
vivo dela. A vida e a morte são lados da mesma moeda que carregamos num bolso
furado e que mesmo caindo numa rua qualquer, tende a voltar para o nosso lado.
Não há como fugir, não há como deter. É deixar a água guiar o seu ritmo e jamais,
nunca esquecer, que mesmo com lembranças irreparáveis de dolorosas, as coisas
vão continuar.